RESUMO : O presente artigo apresenta a evolução jurisprudencial dos Tribunais Superiores em relação à interpretação do art. 16 da Lei nº 11.340/2006. No ponto de vista de seus objetivos, realizou-se uma pesquisa exploratória mediante o levantamento de bibliografia e decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. O estudo conclui que deve ser atribuída interpretação ao art. 16 da Lei Maria da Penha, no sentido de ser uma formalidade essencial a designação de audiência, para que a vítima, que haja manifestado previamente interesse em retratar sua representação, possa expressar-se perante o juízo, até o recebimento da denúncia. A previsão normativa visa proteger a mulher vítima de violência doméstica e familiar, considerada integrante de um grupo vulnerável, que merece especial atenção do Estado, além de combater a violência de gênero, o que será alcançado quando a vontade da ofendida for respeitada, enfrentando-se o machismo estrutural que ainda assola a sociedade.
Palavras-chave: Artigo 16. Lei nº 11.340/2006. Audiência. Renúncia. Representação. Recebimento. Denúncia. Supremo Tribunal Federal. Superior Tribunal de Justiça.
INTRODUÇÃO
A Lei Maria da Penha criou mecanismos específicos para coibir e prevenir a violência doméstica contra a mulher e estabeleceu medidas de proteção, assistência e punição, as quais se baseiam no gênero da vítima. A lei descreve as formas de violência doméstica e familiar praticadas contra a mulher (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral) e prevê medidas protetivas de urgência, como o afastamento do agressor da convivência doméstica, a fixação de limite mínimo de distância e até mesmo a prisão preventiva.
Sua vigência no ordenamento jurídico brasileiro criou mecanismos efetivos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher e busca respostas do Estado, além de configurar um pacto de não tolerância pela sociedade, pois esse tipo de violência constitui uma forma de violação de direitos humanos.
Apesar dos diversos questionamentos, inclusive quanto à constitucionalidade de alguns de seus dispositivos, não há dúvidas que a Lei nº 11.340/2006 inaugurou uma nova fase de ações afirmativas em favor da mulher na sociedade brasileira, em uma reconhecida luta pela igualação e pela dignificação - que está longe de acabar.
O art. 16 da Lei Maria da Penha foi uma das normas que teve sua constitucionalidade discutida. Seu texto disciplina o procedimento para que a vítima se retrate nos crimes de ação penal pública condicionada, exingindo a designação de audiência específica.
A intenção do legislador foi a de evitar que a vítima sofra ameaças ou pressões para se retratar e, se a ofendida já fez a representação no início da persecução, esta se presume válida, não havendo que se falar em designação do ato de ofício pelo magistrado.
O tema é de grande relevância para o Direito, uma vez que está presente no cotidiano jurídico, especialmente na seara processual penal, motivo pelo qual será analisado sob o aspecto de sua aplicação pela doutrina e jurisprudência, abrangendo as áreas de Direito Processual Penal, Penal e Constitucional.
O presente estudo visa apresentar o posicionamento dos Tribunais Superiores, em especial, no que toca à iniciativa da vítima quanto ao desejo de renúncia à representação, como condição para designação da audiência prevista no art. 16 da Lei nº 11.340/2006, afastando-se qualquer interpretação em sentido contrário, bem como a necessidade da formalidade prevista no referido dispositivo legal para que o ato seja considerado válido.
Para tanto, buscou-se uma revisão de bibliografia aprofundada e ampla sobre o assunto, com base em julgamentos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, doutrinas que tratam sobre o tema, além de normas constitucionais e legais do ordenamento jurídico brasileiro.
A importância da análise do tema se dá a fim de demonstrar o papel do Poder Judiciário como responsável em assegurar a eficácia da Lei Maria Penha, a fim de atender sua finalidade precípua de, eliminar, ou ao menos, reduzir os números de violência doméstica, observando-se os direitos da vítima.
O texto visa contribuir e enriquecer o debate sobre a interpretação do art. 16 da Lei nº 11.343/2006, que ultimamente surgiu com maior intensidade entre os operadores jurídicos, especialmente ante as decisões que têm sido proferidas pelos Tribunais Superiores.
1 LEI MARIA DA PENHA
No Brasil, a violência doméstica e familiar contra a mulher não era prioridade das autoridades e da sociedade em geral até a entrada em vigor da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, a qual, regulamenta a previsão do § 8º do art. 226 da Constituição da República de 1998, sobre o repúdio a este tipo de violação de direitos (MELLO, PAIVA, 2022).
Conforme Dias (2015), a referida legislação ficou conhecida popularmente como Lei Maria Da Penha, fazendo referência a Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de duas tentativas de homicídio por parte de seu marido. Na primeira oportunidade, em 29 de maio de 1983, ele desferiu um disparo de arma de fogo, que resultou em paraplegia da ofendida e cerca de uma semana depois de receber alta hospitalar, o agressor tentou eletrocuta-la. O caso teve grande repercussão, foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos e o Brasil foi condenado em 2001, por negligência e omissão frente à violência doméstica.
Isso porque, internacionalmente, a República Federativa do Brasil é signatária da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), a qual foi adotada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos em 06 de junho de 1994, e possui a seguinte finalidade destacada por Gonçalves (2013):
Esse tratado regulamenta a proibição da violência contra a mulher no âmbito regional – assegurando-lhe diversos direitos e liberdades e impondo aos Estados-parte inúmeras obrigações, também conferindo visibilidade a uma temática historicamente obscurecida, conforme já sinalizado. Aborda a violência no âmbito privado, apresentando referenciais teóricos e práticos para a questão da violência doméstica.
A regulamentação dessa proteção tem por finalidade superar o machismo estrutural, fruto do patriarcado, pois, segundo Moraes (2009) “hoje parece medonho em sua ignorância e brutalidade que o fator biológico de o homem ser superior à mulher foi o principal argumento utilizado em toda a história da humanidade para justificar os poderes marital e patriarcal”.
Em sua obra, Capez (2023) ressalta que era necessária a edição de uma lei que conferisse tratamento especial à violência de gênero, para atender o primado constitucional da isonomia, e esclarece que a Lei Maria da Penha possui um rol meramente exemplificativo das formas de violência que podem ser praticadas contra a mulher.
Nesse contexto, a ação penal nos crimes que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher é pública incondicionada, com iniciativa do Ministério Público, seguindo a regra geral do Código de Processo Penal. Entretanto, caso o delito demande representação (ação penal pública condicionada), esta, independente de formalidade, é condição de procedibilidade da ação penal (ANDREUCCI, 2017).
Nas ações penais públicas condicionadas à representação, diferente da previsão do art. 102 do Código Penal e do art. 25 do Código de Processo Penal, que autorizam a retratação da representação até o oferecimento da denúncia, o art. 16 da Lei Maria da Penha dispõe que a ofendida poderá renunciar até o recebimento da denúncia, em audiência específica, e é essa temática que será objeto de aprofundamento no presente artigo.
2 A EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL DA INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 16 DA LEI Nº 11.340/2006
A Lei Maria da Penha disciplina, no artigo 16, procedimento próprio para que a vítima possa eventualmente se retratar de representação já apresentada:
Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
Extrai-se do referido dispositivo legal a existência de uma formalidade própria para que a vítima possa renunciar à representação já oferecida. Veja-se que, essencialmente, são duas as condições necessárias e concomitantes para a realização da audiência: (1) a prévia manifestação da vítima levada ao conhecimento do juiz, expressando seu desejo de se retratar e (2) a confirmação da retratação da vítima perante o magistrado, antes do recebimento da denúncia, em audiência especialmente designada para tanto.
Em caso submetido a julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça, foi reconhecida a irregularidade da retratação realizada pela vítima, em razão de ter sido efetivada em Cartório:
PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO. INADEQUAÇÃO. LESÃO CORPORAL NO CONTEXTO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E ESTUPRO. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA PELA RETRATAÇÃO DA VÍTIMA. RESE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PROVIDO NA ORIGEM. INOBSERVÂNCIA DO DISPOSTO NO ART. 16 DA LEI Nº 11.340/06 E NOS ARTS. 25 DO CPP E 102 DO CP. IRRETOCÁVEL O ENTENDIMENTO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. 1. Esta Corte e o Supremo Tribunal Federal pacificaram orientação no sentido de que não cabe habeas corpus substitutivo do recurso legalmente previsto para a hipótese, impondo-se o não conhecimento da impetração, salvo quando constatada a existência de flagrante ilegalidade no ato judicial impugnado. 2. A Lei Maria da Penha disciplina procedimento próprio para que a vítima possa eventualmente se retratar de representação já apresentada. Dessarte, dispõe o art. 16 da Lei n. 11.340/2006 que, "só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade" (HC 371.470/RS, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 17/11/2016, DJe 25/11/2016). 3. Considerando que, no caso em apreço, a retratação da suposta ofendida ocorreu somente em cartório, sem a designação de audiência específica necessária para a confirmação do ato, correto posicionamento da Corte de origem ao elucidar tal ilegalidade e cassar a decisão que rejeitou a denúncia com base unicamente na retratação. 4. É uníssona a jurisprudência desta Corte Superior no sentido de que, depois de oferecida a denúncia, a representação do ofendido será irretratável, consoante o disposto nos arts. 102 do Código Penal e 25 do Código de Processo Penal. Assim, imperiosa a manutenção do julgado também nesse ponto, acerca do crime previsto no art. 213 c/c art. 224, ambos vigentes à época no Código Penal. 5. Considerando que o Tribunal Estadual não teceu qualquer consideração sobre a ausência de justa causa quanto ao crime de estupro, em virtude da relação amorosa entre o paciente e a vítima, inviável a apreciação direta por esta Corte Superior, sob pena de indevida supressão de instâncias. 6. Habeas corpus não conhecido. (HC n. 138.143/MG, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 3/9/2019, DJe de 10/9/2019.)
Em seu voto, o Ministro Relator destacou que não foram observados os ditames legais, ante a ausência de designação de audiência específica, necessária para a confirmação do ato.
Outra discussão que surgiu foi a respeito da obrigatoriedade da designação da audiência prevista no art. 16 da Lei nº 11.340/2006, oportunidade em que o Superior Tribunal de Justiça se manifestou contrário, nos termos que seguem:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. VIOLÊNCIA CONTRA MULHER. LEI MARIA DA PENHA. PROCEDIMENTO PRÓPRIO. RENÚNCIA À REPRESENTAÇÃO. MOMENTO. AUDIÊNCIA ESPECIALMENTE DESIGNADA. ART. 16 DA LEI N. 11.340/2006. ANTES DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. CASO DOS AUTOS. RETRATAÇÃO DA VÍTIMA APRESENTADA NA RESPOSTA À ACUSAÇÃO, À DESTEMPO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. "A Lei Maria da Penha disciplina procedimento próprio para que a vítima possa eventualmente se retratar de representação já apresentada. Dessarte, dispõe o art. 16 da Lei n. 11.340/2006 que, 'só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade" (HC 371.470/RS, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, DJe 25/11/2016). 2. Esta Corte Superior de Justiça firmou o entendimento de que a realização da audiência prevista no artigo 16 da Lei n. 11.340/2006 somente se faz necessária se a vítima houver manifestado, de alguma forma, em momento anterior ao recebimento da denúncia, ânimo de desistir da representação. 3. No caso dos autos, não há notícias acerca da ocorrência de audiência especialmente designada para a retratação da vítima, até porque esta só veio quando da apresentação da resposta à acusação, ou seja, a destempo. 4. Agravo regimental desprovido. (AgRg no REsp n. 1.946.824/SP, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 14/6/2022, DJe de 17/6/2022.)
O Ministro Joel Ilan Paciornik ressaltou que o entendimento da Corte Superior de Justiça é no sentido de que a realização da audiência prevista no artigo 16 da Lei nº 11.340/2006 somente se faz necessária se a vítima houver manifestado, independendentemente de formalidade específica, em momento anterior ao recebimento da denúncia, ânimo de desistir da representação.
Ocorre que, na hipótese submetida a julgamento, a notícia de que a vítima desejava se retratar foi extemporânea, tendo ocorrido apenas quando da apresentação da resposta à acusação, de forma que já restava precluída.
A fim de pacificar o referido entendimento, os recursos REsp 1964293/MG e Resp 1977547/MG foram indicados como representativos da controvérsia e os autos foram afetados ao rito dos recursos repetitivos, a partir dos quais a Corte Cidadã fixou o Tema Repetitivo 1167:
A audiência prevista no art. 16 da Lei 11.340/2006 tem por objetivo confirmar a retratação, não a representação, e não pode ser designada de ofício pelo juiz. Sua realização somente é necessária caso haja manifestação do desejo da vítima de se retratar trazida aos autos antes do recebimento da denúncia.
Os julgadores concluíram que é imprescindível que a ofendida, por sua própria vontade, desista da representação anteriormente manifestada e sua vontade seja levada ao conhecimento do juízo, para que seja designada a audiência específica prevista no art. 16 da Lei Maria da Penha.
Inclusive, afirmaram que a intenção do legislador, ao inserir o referido dispositivo na Lei nº 11.340/2006, foi a de evitar, ou ao menos reduzir, a possibilidade de retratação pela vítima “em virtude de ameaças ou pressões externas, garantindo a higidez e autonomia de sua nova manifestação de vontade em relação à persecução penal do agressor”.
Invocaram, ainda, a previsão inserta nos arts. 107 e 110 do Código Civil, os quais preconizam que exarada uma manifestação de vontade por indivíduo considerado capaz, consciente, lúcido, livre de erros de concepção, coação ou premente necessidade, esta é válida até que sobrevenha declaração do mesmo indivíduo em sentido contrário.
Avaliaram os Ministros que, os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher merecem uma análise mais sensível, uma vez que o estado psíquico da ofendida pode ser agravado, caso seja suscitada dúvida de sua primeira declaração. Ademais, deve ser levado em conta que essas mulheres, várias vezes, estão inseridas em um contexto de dependência financeira e/ou emocional, de forma que a vítima pode se questionar se deve mesmo comunicar as violações sofridas.
Na decisão, destacou-se ainda que tais circunstâncias revitimizam as mulheres, pois as obrigam a reviver os traumas decorrentes dos abusos, afastando-se da garantia de igualdade material e enfraquecendo os objetivos da Lei Maria da Penha, em especial o de proteger esse grupo vulnerável.
Nesse sentido, concluíram que tornar obrigatória e indispensável a realização da audiência prevista no art. 16 da Lei nº 11.340/2006, com o único objetivo de confirmar representação já efetuada, implica definir condição de procedibilidade não prevista na lei.
A matéria também chegou ao Supremo Tribunal Federal, que assim decidiu:
DIREITO CONSTITUCIONAL E PENAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PEDIDO DE INTERPRETAÇÃO CONFORME DO ART. 16 DA LEI MARIA DA PENHA. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE DE PARTE, INCOMPETÊNCIA E AUSÊNCIA DE QUESTÃO CONSTITUCIONAL. REJEIÇÃO. INTERPRETAÇÃO QUE ADMITE DESIGNAÇÃO DE OFÍCIO DA AUDIÊNCIA DE RENÚNCIA À REPRESENTAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. INTERPRETAÇÃO INCONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE. 1. A promoção de melhorias no sistema de justiça condiz com as atribuições ínsitas ao Ministério Público, razão pela qual a entidade de classe que representa a integralidade de seus membros tem pertinência temática para propor ação direta em face de dispositivo constante da Lei Maria da Penha. 2. Remanescendo questão constitucional, é cabível a propositura de ação direta para afastar interpretação que já tenha sido rejeitada pelo Superior Tribunal de Justiça. 3. A legislação de combate à violência contra mulher deve ser aplicada de maneira estrita, garantido que todos os procedimentos sejam imparciais, justos e neutros relativamente a estereótipos de gênero. 4. O art. 16 da Lei Maria da Penha integra o conjunto de normas que preveem o atendimento por equipe multidisciplinar. Sua função é a de permitir que a ofendida, sponte propria e assistida necessariamente por equipe multidisciplinar, possa livremente expressar sua vontade. 5. Apenas a ofendida pode requerer a designação da audiência para a renúncia à representação, sendo vedado ao Poder Judiciário designá-la de ofício ou a requerimento de outra parte. 6. Ação direta julgada parcialmente procedente, para reconhecer a inconstitucionalidade da designação, de ofício, da audiência nele prevista, assim como da inconstitucionalidade do reconhecimento de que eventual não comparecimento da vítima de violência doméstica implique retratação tácita ou renúncia tácita ao direito de representação. (ADI 7267. Relator: Ministro Edson Fachin. Plenário. Data do julgamento: 22/08/2023. Data da Publicação: DJE 11/09/2023).
O Plenário do Supremo Tribunal Federal realizou interpretação conforme a Constituição do art. 16 da Lei nº 11.340/2006, no sentido de reconhecer a inconstitucionalidade da designação, de ofício, da audiência nele prevista, bem como que eventual ausência da vítima de violência doméstica não implica “retratação tácita” ou “renúncia tácita ao direito de representação”.
Dessa forma, o art. 16 da Lei Maria da Penha não deve ser lido de forma isolada, até porque a função da audiência perante o juiz não é unicamente avaliar a presença de um requisito procedimental, mas permitir que a ofendida, assistida por equipe multidisciplinar, possa expressar sua vontade livremente.
Concluiu a Corte Constitucional que a obrigatoriedade da audiência prevista no art. 16 da Lei Maria da Penha, sem que haja pedido de sua realização pela ofendida, viola o texto constitucional e as disposições internacionais que o Brasil se obrigou a cumprir, de erradicar a violência contra a mulher, na medida em que discrimina injustamente a própria vítima de violência.
CONCLUSÃO
A sociedade ainda possui valores que fomentam a violência de gênero, fruto do patriarcado, o que impõe a necessidade de uma postura mais ativa na implementação de políticas públicas de combate à discriminação, de valorização e, sobretudo, de respeito às mulheres, afastando-se a ideia de superioridade e dominação do homem e fraqueza e subordinação da mulher.
A Lei Maria da Penha aliada aos Tratados internacionais ratificados pelo Brasil sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, prevenção, punição e erradicação da violência desse grupo vulnerável, integram o microssistema jurídico voltado à proteção da ofendida e representam o esforço em mudar esse paradigma.
No que toca especificadamente à aplicação do art. 16 da Lei nº 11.340/2006, nos termos das decisões dos Tribunais Superiores aqui expostas, garante-se que, nos casos que envolvam violência de gênero contra mulheres, o procedimento seja imparcial e justo, além de assegurar o direito da ofendida de ser ouvida e ter respeitada sua vontade, fortalecendo o combate a esteriótipos ou interpretações discriminatórias que revitimizam as mulheres.
Dessa forma, o direito à liberdade só irá prevalecer quando a mulher puder optar pela realização da audiência de retratação prevista no artigo 16 da Lei Maria da Penha, pois, determinar o comparecimento da ofendida a essa audiência resulta em violação à sua dignidade. Ademais, não se pode admitir que sua falta no ato resulte em automática renúncia ao direito de representação, pois este é o momento de verificar o real desejo da vítima de retirar a representação contra o agressor, e não de confirmá-lo.
A evolução no Poder Judiciário na defesa dos direitos das mulheres é notável, porém, os dados de violência doméstica e familiar[1] ainda são alarmantes, de forma que é dever de todos os atores da sociedade o combate a essa prática machista e discriminatória.
REFERÊNCIAS
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______. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de Outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em:<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm>. Acesso em: 21 out. 2023.
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______. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1964293. Relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Terceira Seção. Data do julgamento: 08/03/2023. Data da Publicação: DJe de 29/03/2023. Disponível em: < https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=202103239601>. Acesso em: 16 out. 2023.
______. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1977547. Relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Terceira Seção. Data do julgamento: 08/03/2023. Data da Publicação: DJe de 29/03/2023. Disponível em: < https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=202103948148>. Acesso em: 16 out. 2023.
______. Superior Tribunal de Justiça. Tema Repetitivo 1167. Relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Terceira Seção. Afetação na sessão eletrônica iniciada em 03/08/2022 e finalizada em 09/08/2022. Disponível em: < https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=202103948148>. Acesso em: 16 out. 2023.
______. Supremo Tribunal Federal. ADI 7267. Relator: Ministro Edson Fachin. Plenário. Data do julgamento: 22/08/2023. Data da Publicação: DJE 11/09/2023. Disponível em: < https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15360854258&ext=.pdf>. Acesso em: 16 out. 2023.
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CAPEZ, Fernando. Legislação penal especial. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2023. E-book.
DIAS, Maria Berenica. Lei Maria da Penha: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. Ebook. Disponível em: https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/77954081/v4/document/106932283/anchor/a-106932283. Acesso em: 18 out. 2023.
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MORAES, Maria Celina Bodin de. Vulnerabilidades nas relações de família: o problema da desigualdade de gênero. In: DIAS, Maria Berenice (org.). Direito das famílias: contributo do IBDFAM em homenagem a Rodrigo da Cunha Pereira. São Paulo: Ed. RT, 2009, p. 306-322.
Graduada em Direito pela UNESC – Centro Universitário do Espírito Santo. Especialista em Direito Constitucional com Ênfase em Direitos Fundamentais pela Faculdade CERS .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIEVORE, MARIANA ARPINI. A interpretação do artigo 16 da lei nº 11.340/2006 pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 out 2023, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /63592/a-interpretao-do-artigo-16-da-lei-n-11-340-2006-pelo-supremo-tribunal-federal-e-pelo-superior-tribunal-de-justia. Acesso em: 28 dez 2024.
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